A ilustração Little Mermaid Saved the Prince (1911), de Edmund Dulac, não é apenas uma representação visual do conto de Hans Christian Andersen, mas um símbolo profundo de sacrifício, amor incondicional e destino. A Pequena Sereia, ao salvar o príncipe do naufrágio, entra em um ciclo de renúncia e busca espiritual que ecoa temas recorrentes na tradição medieval e na própria história da Casa de Avis.
A Arte de Edmund Dulac: Um Estilo que Remete ao Passado
Edmund Dulac (1882-1953) foi um dos grandes ilustradores da era de ouro da ilustração de livros. Seu estilo, fortemente influenciado pela arte persa e japonesa, evoca um mundo de sonhos e simbolismo. Em Little Mermaid Saved the Prince, Dulac utiliza tons aquáticos que misturam realidade e fantasia, criando uma atmosfera de entrega e mistério. A Pequena Sereia, com sua expressão calma e resignada, segura o príncipe inconsciente, enquanto o mar ao redor parece devorá-los. O jogo de luz e sombra sugere que, embora ela tenha resgatado o príncipe, está destinada a permanecer em um mundo que não é o dela — um eco do tema da exclusão e do sacrifício.
O conto original de Andersen não é apenas uma história de amor romântico, mas uma metáfora sobre sacrifício, renúncia e a busca por um ideal que transcende o mundo físico. A Pequena Sereia entrega sua voz em troca de pernas humanas, sofre dores excruciantes e, ao final, não conquista o amor do príncipe, mas alcança um caminho espiritual superior. Esse destino lembra a trajetória de figuras históricas que renunciaram ao próprio conforto em nome de algo maior.
A Simbologia da Pequena Sereia e a Casa de Avis
A narrativa de A Pequena Sereia ressoa profundamente com certos aspectos da história da Casa de Avis, especialmente no que tange à sua missão espiritual e política. A dinastia Avisina, surgida em meio à crise de 1383-1385, consolidou-se com um forte sentido de dever e sacrifício, simbolizado na figura de D. João I e na Ordem de Cristo. Os navegadores portugueses, descendentes diretos dessa tradição, partiram para mares desconhecidos movidos por uma fé e um propósito civilizacional, muitas vezes sem a garantia de retorno. Assim como a sereia de Andersen, sacrificaram-se por uma visão maior, cujo reconhecimento nem sempre veio em vida.
A renúncia da sereia ao mundo marinho em troca de uma realidade terrena inatingível é um espelho das escolhas feitas por figuras de Avis que, em nome da fé e da expansão do conhecimento, renunciaram a bens materiais e à segurança. A epopeia marítima portuguesa é, em certo sentido, uma versão histórica desse arquétipo: navegadores lançaram-se ao mar, muitas vezes sem retorno, por um ideal que ultrapassava o mundo tangível.
A Voz Perdida e a História Oculta
Outro paralelo interessante entre a sereia de Andersen e a Casa de Avis está na questão da voz. A Pequena Sereia entrega sua voz à bruxa do mar para se tornar humana, mas nunca pode contar ao príncipe que foi ela quem o salvou. Analogamente, muitos feitos de Avis e de sua linhagem caíram no esquecimento ou foram apropriados por outras narrativas históricas. A dinastia que fundou um império global e consolidou a fé católica além-mar teve seu papel diluído na modernidade, e grande parte de sua história permanece submersa, tal como a voz da sereia.
Esse esquecimento seletivo não é acidental. Assim como na história da Pequena Sereia, onde a personagem vê seu sacrifício apagado pelo tempo, muitos feitos da Casa de Avis foram relegados a notas de rodapé da história oficial. No entanto, a verdade persiste nas ondas do tempo, esperando aqueles que desejam resgatá-la.
A Redenção Através do Conhecimento
A arte de Edmund Dulac nos convida a refletir sobre os ciclos de sacrifício e redenção que permeiam tanto os contos de fadas quanto a história real. A Pequena Sereia, mesmo sem alcançar seu desejo terreno, encontra um caminho superior. Da mesma forma, o legado de Avis, ainda que esquecido ou reinterpretado, mantém sua essência intacta, aguardando aqueles que buscam resgatá-lo das águas profundas da história.
Na tradição de Avis, o conhecimento e a fé eram as forças que guiavam suas ações. Talvez a lição final de A Pequena Sereia seja justamente essa: a verdadeira salvação não está no reconhecimento mundano, mas na continuidade do espírito e da missão — um legado que transcende o tempo e as marés.